JUSTAMENTE PORQUE SONHÁVAMOS*

*Por Ananda Maria Maciel Gomes, Pedagoga e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina

“A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.”
(“A Verdade”, Carlos Drummond de Andrade)

       É no entretecer com o poema de Drummond, que a autora compõe este romance, entrelaçando as vidas dos protagonistas – Suzana, Crispim, Agenor e Lucília – com as de outros adolescentes abandonados pelos pais, em uma cidade fictícia do interior de Minas Gerais.

       A obra, permeada de uma atmosfera plena de sonhos férteis e suspense, tristezas, mistério, romance, emoções e medos, parece desvelar não somente o cotidiano juvenil ficcional, mas também cala fundo em um universo fecundo de realidade.

      O enfoque principal do enredo é o destino de cada família de Ponta Escura, cujo canto do tordo sangrento anuncia a tragédia: pais e mães, sem qualquer explicação nem escrúpulos, repentinamente “vão conhecer os manauras”, deixando os filhos adolescentes à mercê de sua própria sorte. Contudo, velado nas entrelinhas, do que realmente se fala é do amadurecimento proveniente da autonomia, ainda que seja por meio do sofrimento e da solidão de cada uma das vidas entrelaçadas.

       O texto é imensamente rico, composto por palavras cultas não muito recorrentes no uso coloquial (e por isso mesmo de leitura árdua, porém instigante). Também há muitos aforismos, neologismos, metáforas e “ingresias tranchãs”. Além disso, a autora dialoga com grandes nomes e obras da literatura nacional, tais como: Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles, Vidas Secas, de Graciliano Ramos e Sagarana e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

       A autora recorre a um artifício escritural incomum, misturando 3ª pessoa do singular através de um narrador onisciente, com os testemunhos oculares de Suzana e Crispim, narrados em 1ª pessoa e entremeados às falas do narrador. Há também muitas cenas costuradas como o lado avesso de um bordado, não prevendo cronologias e deixando espaço para novos pontos e paisagens a serem trançados. Há muitos fios soltos no decorrer da trama, uma história entrelaçada de pontos arrematados (ou não) pelo leitor.

       Justamente Porque Sonhávamos é um convite ao devaneio, à reflexão sobre a vida e a morte, sobre o amor, o apego, a solidão e o abandono. É uma ponderação permeada de consciência política que deseja a construção de uma realidade social mais justa. É também um brinde ao amor juvenil vivido em toda a sua intensidade e aos elos geracionais que se intrincam nas relações familiares e de amizade.

       Há que se ter coragem para passar pela porta e encarar a verdade – e a busca de cada história pessoal envolve o reconhecimento da meia verdade que está na posse de outra pessoa. Cada um dos personagens visita a sua própria casa do abandono para poder “encontrar a água do corgo que reflete a cor de sua própria alma”. Cores estas que se entrelaçam continuamente umas às outras, desvelando o que há de melhor e de pior na condição humana. Nada melhor do que beber dessa água “para ficar e ser reconhecida na sua juventude”.

Justamente porque sonhávamos
Stella Maris Rezendejustamente
Globo Livros, 2017

Deixe um comentário